Quaresma: exercício de alteridade.

23-02-2012 16:48

         A fé cristã nos coloca sempre em relação às outras pessoas. Não existe Cristianismo que parta do individualismo. Ser cristão é estar num relacionamento diferenciado onde se procura aproximações e resoluções de problemas nas relações. É claro que a fé cristã não é a negação do indivíduo. Mas, a fé cristã não prega, não prega, não incentiva o individualismo, o fechar-se em si mesmo. São Tiago, o apóstolo, nos adverte: “Meus irmãos, que adianta alguém dizer que tem fé, quando não tem as obras? A fé seria capaz de salvá-lo? Imaginai que um irmão ou uma irmã não tem o que vestir e que lhes falta a comida de cada dia; se então algum de vós disser a eles: ‘ide em paz, aquecei-vos’ e comei a vontade’, sem lhes dar o necessário para o corpo, que adianta isso? Assim também a fé: se não se traduz em ações, por si só está morta.”  

         Portanto, paralelo às práticas religiosas e devocionais está a prática da solidariedade. Todo o período da quaresma é uma oportunidade oferecida pela Igreja Católica para que seus filhos e filhas a exercitem na prática da caridade sendo mais solidários/as com as demais pessoas. Também é óbvio que o incentivo a estas práticas não se dá somente neste tempo favorável de penitência e orações, mas para os católicos e católicas, todo o nosso tempo existencial é tempo favorável para a nossa salvação. Cada dia para o qual acordamos se apresenta como oportunidade grandiosa de conversão; oportunidade para se recomeçar a partir das falhas e limitações; oportunidade para se chegar a Deus e às pessoas que encontrarmos no dia a dia presentes nas mais variadas situações.

         Na quaresma, tempo mais propício para a conversão, por excelência é o momento forte de ascese – exercício mais acentuado para se tornar cada dia melhor em tudo o que fizermos. A ascese é uma palavra que nos remete ao aperfeiçoamento espiritual, porém, o mesmo não é desligado da vida cotidiana dos féis que se dispõe a esta caminhada.

         Como já vimos anteriormente, a fé cristã só se plenifica na realidade concreta das relações sociais, pois ‘a fé se obras é morta’. Daí ser bom lembrarmos que toda prática quaresmal está relacionada à ascese, ao aperfeiçoamento espiritual das pessoas que desejam um progresso maior na fé. Por outro lado, crescer na fé é crescer no exercício alteridade. Isto é, toda prática quaresmal deverá nos tornar mais interdependentes e favorecer a uma maior interação com as outras pessoas. A alteridade praticada com o espírito da quaresma nos abre para o colocar-se no lugar da outra pessoa. Exemplificando melhor: tudo que realizamos a partir do espírito da quaresma tem o objetivo de nos ajudar a experimentar o que a outra pessoa está sentindo. Por exemplo, quando jejuamos, fazemos penitência, deixamos de realizar ou comer algo, damos esmolas, praticamos algum gesto concreto de solidariedade, estamos saindo de nós mesmos/as e indo na direção das outras pessoas, principalmente de quem está sofrendo. Deixar de comer por causa do jejum e não partilhar o alimento que ficou guardado ou o dinheiro desse mesmo alimento é ter uma prática quaresmal vazia de sentido. No jejum nós sentimos a fome das pessoas e as socorremos com aquilo que não comemos. Fazer jejum e não partilhar é economia. É fechar-se em si mesmo. A mesma situação se estabelece com as outras práticas religiosas da quaresma: tudo está voltado para o socorro do irmão e da irmã. Tudo deverá criar solidariedade na alteridade.

         A quaresma é o tempo de uma alteridade consciente. Deverá nos favorecer os relacionamentos reestruturando as situações quebradas pela falta de cidadania. Viver a quaresma torna-se assim uma oportunidade ímpar de se repensar como estamos vivenciando os apelos de Jesus no que se refere ao relacionamento com as pessoas sofredoras. É salutar não se esquecer do que nos diz o próprio Jesus: “... Tive fome e me destes de comer...” (Mateus 25, 35). E ainda, “amai-vos uns aos outros assim como eu vos amei.” (Jo. 15, 12). Na quaresma a compreensão e vivência da alteridade tornam-se necessárias como elementos essenciais da ascese.    

Padre Gilberto Orácio

 
 

Pe. Gilberto Orácio de Aguiar, autor desse texto, é do clero de Salvador cursando o doutorado em Ciências Sociais na PUC/SP. Email: mandiba@hotmail.com